segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Respeito aos livros

reading_free
.
"Portanto, as palavras são simultaneamente muito fortes e muito limitadas: chegam para fazer decolar a nossa imaginação, mas não têm o mesmo grau de existência, ficam sempre um furo abaixo da realidade. A significação toca simplesmente a nossa imaginação, não muda a ordem das coisas.
Isto quer também dizer que haverá sempre no mundo uma frase para nos consolar. Haverá sempre uma palavra, semente de sonho, fonte de ilusão, para fazer germinar no escuro aquilo que desejamos. Quando a ordem do mundo for claramente oposta, haverá sempre lugar para uma palavra, talvez mesmo vinda de uma boca amiga, que conosco a pronunciará. Podemos sempre contar histórias a nós próprios, alimentar-nos de ilusões e gritar «não fui eu», «não sou eu».
E reciprocamente: enquanto houver palavras, ou enquanto elas se ouvirem, haverá sonho. Porque o sonho tem de mágico o fato de só depender do pronunciar do seu nome. Digo «lua» e aparece a lua. Digo «no século VI, na fabulosa capital da África»: com o simples pronunciar dos seus nomes, e vão nos apresentando as delícias da imaginação, os artifícios, as invenções.
Estes dóceis servos, no entanto, não são mais do que sombras: mais precisamente, são ficções. Espectros, explicariam alguns autores, «fantasmas»: sonhos. E o sonho é propício, mas não é material. Se as palavras não tivessem a capacidade de se libertar das coisas, estaríamos presos ao momento presente, colados à realidade concreta: é impossível ir para onde não esteja o nosso corpo concreto, miserável superfície de músculos e sangue, num simples ponto do mundo! Mas se disser «o primeiro momento do universo» ou «o átomo», se disser «o paraíso terrestre», coloco-me à escala dessas realidades que nunca hão de existir em concreto para mim. E por isto que os livros são universos encantados: quando a realidade é enfadonha, basta decolar através da imaginação. E para isto são necessárias palavras."
Anne Sauvagnargues

0 comentários: